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Mitos e fatos da Reinheitsgebot, a ‘lei de pureza da cerveja alemã’

A Reinheitsgebot, nome moderno dado à lei de 1516 que transformou a água, a cevada e o lúpulo nos únicos ingredientes permitidos para a cerveja na Baviera, vai completar meio milênio de existência no ano que vem, cercada de falta de conhecimento, mitos e besteiras repetidas à exaustão por entusiastas das cervejas artesanais. Por outro lado, continua sendo vista, e tratada, como um patrimônio do mundo cervejeiro, tanto que há um grupo de cervejeiros alemães empenhado em torná-la patrimônio da humanidade.

Poucas pessoas entendem realmente a sua origem e suas implicações. Mesmo a maioria das cervejarias que dizem segui-la não a respeitam de verdade a lei de pureza. Para começar, é necessário separar a lei de 1516 da atualmente vigente. São completamente distintas.

A lei promulgada pelo duque Guilherme IV da Baviera, em 23 de abril de 1516, não tinha nome e não incluía as leveduras, que só mais tarde, no século 19, foram reconhecidas como protagonistas da fermentação, pelos estudos de Louis Pasteur, e o termo “cevada” (gersten) foi substituído por “malte de cevada” (gerstenmalz). Em 1918, quando da formação da República de Weimar, ela foi batizada de “Reinheitsgebot” ou “exigência de pureza”.

Dizem seus adeptos que ela é a mais antiga lei de controle de alimentos do mundo ainda em vigor. Seria, se ainda estivesse em vigor de fato. Ocorre que, recentemente, por influências da União Européia (que considerava a Reinheitsgebot uma norma protecionista, e a derrubou em 1987) e para se adaptar ao mercado moderno ela acabou sofrendo drásticas modificações, fazendo hoje parte do “German Tax Code”.

Foto (Foto: Aniversário de 450 anos da lei foi comemorado com selo)
Foto (Foto: Aniversário de 450 anos da lei foi comemorado com selo)
Com o passar dos anos a Reinheitsgebot aumentou a sua abrangência, mas desde a decisão da Corte Europeia, ela não atinge a produção de cerveja voltada ao mercado externo. Aliás, muitos de vocês ficariam pasmos de saber que a produção de cervejas com arroz para exportação foi uma grande característica das cervejarias alemães que certamente contribuíram para o “enfraquecimento” da cerveja no século passado. Não abrange também cervejas produzidas fora da Alemanha e por cervejeiros caseiros. A Reinheitsgebot atual, aliás, libera o uso de açúcar. E, tecnicamente, pode piorar a qualidade da cerveja, com as limitações ao tratamento da água, ao uso de nutrientes para as leveduras, à adição de gás carbônico, ao tratamento das leveduras para reutilização, e dos lúpulos para evitar aromas desagradáveis.

Fora isso, não se pode dizer sequer que ela é a lei do tipo mais antiga da Alemanha. Em Augsburg, em 1156, havia uma lei muito mais diretamente ligada à qualidade da bebida, que determinava que o cervejeiro que fizesse cerveja ruim teria que doá-la aos pobres, ou simplesmente jogá-la fora. Outras legislações cervejeiras apareceram em Nuremberg em 1293, em Munique em 1363 até que em 1447 surgiu a limitação dos ingredientes, ignorada pelos cervejeiros por 40 anos, até que o duque Albrecht IV (pai de Guilherme IV) repetiu a ordem, que aparece em outra lei em 1493. Todas essas normas vieram antes da Reinheitsgebot, que, pelo visto, não trouxe grandes novidades.

É importante notar que a lei de 1516 não era sequer uma lei “alemã”, era uma lei “bávara”. Existe uma tendência, hoje em dia, de classificar os estilos cervejeiros por “escolas” seguindo as fronteiras atuais, que inexistiam séculos atrás. A região norte do que hoje é a Alemanha não estava sujeita a lei da Baviera, e assim permaneceram por quase quatro séculos, até a unificação, produzindo estilos que não se enquadravam nas restrições, como as gose de Leipzig (que têm adição de sal e coentro) e as berliner weisse (que usam trigo).

Falando em trigo… um dos motivos que destrói o argumento de que a Reinheitsgebot seria uma regra para manter a “qualidade da cerveja” é a exclusão do trigo como ingrediente. Esse é um dos indicativos mais claros do contexto político e econômico que gerou a lei. O trigo está na gênese da história cervejeira alemã, tanto que os vestígios mais antigos de fabricação da bebida naquela região, encontrados no sítio arqueológico próximo ao vilarejo de Kasendorf, em Kulmbach, datados de cerca de 800 a.C. são de uma cerveja de trigo escura.

Foto (Foto: Duque Guilherme IV: manobra política contra a cerveja de trigo)
Foto (Foto: Duque Guilherme IV: manobra política contra a cerveja de trigo)
Na época da promulgação da lei, o monopólio da produção das cervejas de trigo era privilégio da casa nobre de Degenberg. Ao proibir o trigo, o duque Guilherme IV, que pertencia à casa de Wittelsbach, deu um golpe fatal na saúde financeira dos rivais, como conta Horst Dornbusch, uma das principais autoridades na história da cerveja alemã. Somente em 1602, quando Sigismund Degenberg morreu sem deixar herdeiros, as propriedades da família foram passadas ao clã reinante e – surpresa! – as weissbiers voltaram a ser legalizadas, pelo duque Maximilian I, bisneto de Guilherme IV.

Nunca é demais ressaltar que, além de não ostentar desde o início o nome pelo qual se tornou um fenômeno de marketing das cervejarias, a maior parte do texto da Reinheitsgebot trata puramente de controle de preços. Além de motivações locais, essa preocupação com o tabelamento pode estar relacionada ao prelúdio da chamada “Revolução dos Preços” que afetou a Europa Ocidental entre o fim do século 15 e o começo do século 17, como demonstra o economista Douglas Fisher no ensaio “The Price Revolution: A Monetary Interpretation”, publicado em 1989 no World Journal of Economic History.

Outras razões de ordem econômica, mais específicas, já foram apresentadas por diversos autores. A necessidade de resguardar o trigo e o centeio para a fabricação de pães é frequentemente destacada, ainda que não haja fontes documentais contemporâneas muito precisas quanto a este ponto. Mais bem documentado é o poder que a Igreja Católica havia obtido por meio do “grutrecht”, o direito de distribuir e conceder permissão para uso do “gruit”, a (suposta) mistura de ervas que antecedia o lúpulo como elemento de tempero e conservação da cerveja. Instituir o lúpulo foi uma forma de retomar o controle sobre as novas cervejarias que começaram a proliferar.

Havia mais um fator econômico a respeito do lúpulo. Sem contar um outro fator fundamental: as cervejas bávaras perdiam de lavada a disputa no comércio marítimo para as cidades integrantes da Liga Hanseática, que haviam adotado o lúpulo há cerca de um século e meio, e tinham suas cervejas exportadas com sucesso para Amsterdam e outros portos europeus. Ao adotá-lo como ingrediente básico, longe de estar na vanguarda de qualquer coisa, a Baviera estava no máximo tentando alcançar os concorrentes. E isso quando as cervejas lupuladas de Einbeck – chamadas jocosamente de bock – já começavam a invadir a região.

Enfim, a crítica básica à Reinheitsgebot é bem simples, na realidade. Deriva do “misticismo” em torno dela, que gera uma admiração pueril. O que mais se vê são cervejarias afirmando com orgulho que “seguem a lei de pureza alemã de 1516″… A maioria, provavelmente em sua ignorância, a desrespeita nas entrelinhas dos rótulos.

Para comparação, seguem os textos, traduzidos para o inglês:

A lei de 1516:

We hereby proclaim and decree, by Authority of our Province, that henceforth in the Duchy of Bavaria, in the country as well as in the cities and marketplaces, the following rules apply to the sale of beer:

From Michaelmas to Georgi, the price for one Mass [Bavarian Liter 1,069] or one Kopf [bowl-shaped container for fluids, not quite one Mass], is not to exceed one Pfennig Munich value, and From Georgi to Michaelmas, the Mass shall not be sold for more than two Pfennig of the same value, the Kopf not more than three Heller [Heller usually one-half Pfennig].

If this not be adhered to, the punishment stated below shall be administered. Should any person brew, or otherwise have, other beer than March beer, it is not to be sold any higher than one Pfennig per Mass. Furthermore, we wish to emphasize that in future in all cities, markets and in the country, the only ingredients used for the brewing of beer must be Barley, Hops and Water. Whosoever knowingly disregards or transgresses upon this ordinance, shall be punished by the Court authorities’ confiscating such barrels of beer, without fail. Should, however, an innkeeper in the country, city or markets buy two or three pails of beer (containing 60 Mass) and sell it again to the common peasantry, he alone shall be permitted to charge one Heller more for the Mass of the Kopf, than mentioned above. Furthermore, should there arise a scarcity and subsequent price increase of the barley (also considering that the times of harvest differ, due to location), WE, the Bavarian Duchy, shall have the right to order curtailments for the good of all concerned.

Signed: Duke Wilhelm IV of Bavaria on April 23, 1516 in Ingolstadt.

A lei atual, do código tributário de 1993:

Only barley malt, hops, yeast and water may be used for the brewing of bottom-fermented beer, with the exceptions contained in the regulations in paragraphs 4 to 6.
The brewing of top-fermenting beer underlies the same regulations, however other malts may be used and the use of technically pure cane, beet or invert sugars as well as dextrose and colouring agents derived from these sugars is allowed.
Malt shall be taken to mean: any grain that has been caused to germinate.
The use of colouring beers, if brewed from malt, hops, yeast and water, in the preparation of beer is allowed but is subject to special supervisory measures.
Hop powder, hops in other milled forms and hop extracts may be used in brewing, so long as these products comply with the following requirements:
Hop powder and other milled hop forms, as well as hop extracts must be produced exclusively from hops.
Hop extracts must:
contribute the same flavouring and bittering substances to the wort as would have been contributed had hops been simmered with the wort.
fulfil the requirements of the German Pure Food Laws.
only be added to the wort before or during the simmering phase.
Only materials which act mechanically or by absorption and are thereafter removable, leaving no, or only such residue in the beer which is of no health, taste or odour concern may be used to clarify beer.
Upon request, in individual cases, such as the preparation special beers and beers intended for export or scientific experiments, exceptions to the requirements of paragraphs 1 and 2 can be made.
The requirements of paragraphs 1 and 2 are not applicable to brewing for personal consumption (home brewing).
After establishing the original extract content in the fermenting room, water may not be added to beer without permission of the customs office. The customs office can permit the brewer to add water to beer after the original extract content has been established in the fermenting room, provided the appropriate precautionary measures have been observed. Beer wholesalers or publicans are, under no circumstances, allowed to add water to beer.
Brewers, beer wholesalers or publicans are not allowed to mix beers of different original extract contents nor to add sugar to beer after the beer tax has been calculated. The Finance Minister can allow exceptions by decree.
For the production of top-fermenting simple or very low original extract content beer, according to the Additive Authorisation Regulation (…)

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